O RIO IMORTAL >
Ulysses Bôscolo, 03 de julho de 2018
sem camisa
em pé
descalço sobre o tapete
ponho as mãos no bolso
aperto algumas moedas
fico ligeiramente de lado para o cavalete
como uma canoa
ancorada
sem graça
na margem oposta
o metal batido com medo do frio
algo na luz acesa me incomoda
algo dançando feito um palhaço
indo da sala para a cozinha
carregando uma caixa de marimbondo
na colina dos 41 anos
não me importo de estar seminu
por volta das sete da noite
com borrachudos e pernilongos
circulando as veias saltadas
faço o que ele deseja
e quero que termine logo
tento esconder as borboletas estranhas
que levamos conosco na solidão
e reparo nos movimentos dos pincéis
entrando e saindo da água feito libélulas
logo desperto os fantasmas
que agitam as folhas de chá entre nós
e deixo cair certas máscaras
que despachadas sobre o rio
flutuam
descanso o joelho esquerdo
sinto a dor aguda que desde o ano passado
me acompanha
abro o cinto no píer
passo a conversar
como se estivéssemos num estaleiro
do século 19
perguntando sobre o céu em junho
falando sobre arquitetos cegos
que construíram pontes
entre desfiladeiros na China
reparo no pequeno rinoceronte de ébano
na prateleira de pigmento
com pó
nos perdemos
três mastros adiante
espremendo carvão e giz
pensamos nas margens da ilha dos mortos
ali
a cor encontrou
em determinado instante a sua morada
na cunhagem delicada das palavras
que nascem nas águas do rio de vidro
cacos de cerâmica
a água que une o barro
pedras
a água do córrego perto de sua casa
é difícil saber o destino
da água dos olhos mergulhados na distância
este sorvedouro
que engorda as capivaras
me aproximo devagar para fitar o reflexo verde
ora amarelo de Nápoles mastigado
profundo
que me assusta
e decido ficar mais e mais imerso
só para olhar e olhar o que está por vir
no retrato
começando pela cabeça
uma árvore onívora descascada no rosto
depois os braços
longilíneos
tolos
desaparecendo na barriga de um gafanhoto
a pele cheia de estrias formando lá embaixo
a cabeça de um cão
nos ombros a laje
cheia de cipós
nas sombras
o uirapuru descuidado
suportando a dor de ter perdido a minha mãe
os ângulos são desiguais
e certas partes inesperadas acendem a madeira
de sua paleta
como uma verdadeira fogueira
e é tarde demais para escapar
desta curiosa chispa
que atende aos pedidos de algum Deus
para encontrar a força necessária para reviver
o ânimo dos insetos na choupana da pintura
impossível do fogo
os petróglifos de hoje são sons abafados
de ondas de respiração
na flora da figura
onde todo o gris ardente
revelado pelo trabalho do pintor
aparece no conhecimento frágil
e na sabedoria tátil
dos corpos representados na garoa de fundo
assim me curvo a uma breve ascensão
e nada mais se mostra por inteiro
sem se dissolver
além da morte da memória
em cada um dos olhos
solitários
que por cima da água
flamejam
e flutuam em sua direção
correntes suaves de maravilhas
alimentam os volumes das coisas escondidas
pelas horas
algo brilhante escorre
e escapa
puxado para fora
formando aquelas plantas de raízes longas
que definem o espaço
entre as margens nas pernas
a minha cabeça está polida
ornada com folhas até o pescoço
desprendo-me da vida para ganhar outra
com calças molhadas azuis
no charco
procuro imaginar o pincel
no rio do silêncio
levantando os detritos na lona
a chuva insiste em sedimentar o óleo
se as obras fossem vistas pelo sereno
elas andariam nas nervuras da estalagem
os olhos pousariam no zinco oxidado
e anaiuri apareceria
levando toda a personalidade para a terra
cavando palavras de carne e osso no barranco
humano
além das lápides gravadas e pintadas
dos restos dos encontros
entre a eternidade do modelo
e os malditos sambaquis dos artistas
uma coleção de retratos espalhados pela luz
cursos de sangue
além da folhagem
é de madrugada que as formas famintas
aparecem
na presença do maciço das cerdas
e me encontro sonolento
próximo do território rebelde
e vejo diante da lareira que arde
o que eu sou e o que ele é
fumaça em campos de cana de açúcar
ostras de água doce
numa tigela de ferro
o que se perde e o que se ganha
antes de embarcar a gordura em mosaicos
empilhados
durante o trajeto
observando um ao outro
medindo entre os dedos
a proporção imaginada dos corais
a altura
dos deltas espremidos em lajes de lona