TODO RETRATO É UM RIO >

Ernesto Bonato, outubro de 2016

O que faz com que duas pessoas se encontrem toda semana, sempre no mesmo horário, durante meses ou mesmo anos a fio para se sentarem uma diante da outra quase imóveis, quase quietas, por duas horas ou mais, cúmplices em um propósito que se revela de saída impossível: o de fixar em uma única imagem a inescrutável face humana? Quem sabe dos motivos reais? Há algo de patético e irremediavelmente belo nesse esforço que se sabe vão e que se sustenta em algo invisível, inapreensível e que não oferece de antemão nenhum tipo de garantia ou ganho. A cada instante tudo se modifica: luz, cores, a posição dos corpos, os humores, a alma que se move nos dois sujeitos que compõem a ação - o modelo e o pintor. Tudo é movediço e, no entanto, o mesmo lugar, a mesma pose, a mesma disposição, a mesma tela são revisitadas a cada vez como se sempre estivessem ali. Esta mobilidade na imobilidade e, inversamente, a sensação de que 'algo' permanece apesar do fluxo em perpétua mutação, emergem dessa situação absurdamente artificial e codificada que é a pose. Nesse estado de forçada imobilidade, notamos que tudo se move. Nesse estado de silêncio, escutamos os inúmeros sons a nossa volta. Nesse esforço de perceber diretamente o que está diante de nós, surpreendemos a memória brincando com seu jogo de espelhos. A imagem que vai sendo formada na tela é sempre o passado, mas é também um acúmulo de presentes sobrepostos num concerto harmônico e desarmônico ao mesmo tempo. Esse (des)concerto produz um micro movimento onde a alma se imiscui e brinca, às vezes num sorriso sutil ou num brilho de olho, e algo mágico parece nos surpreender: o fato de, apesar de tudo, estarmos diante de uma presença e que, em algum nível, é possível haver um encontro real entre duas pessoas.


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